Uma reflexão sobre a medicina Ayurvédica e suas noções de corpo e saúde.
Introdução
Entrando em contato
Sempre tive uma afinidade quase inexplicável com a cultura indiana. Desde os meus 18 anos tenho o hábito da prática do Yoga. A cultura indiana, a partir da visão do Ayurveda, começou a influenciar minha vida com mais intensidade desde 2008, quando comecei a assistir algumas palestras sobre psicologia ayurvédica em uma escola de Yoga, em Florianópolis (no sul do Brasil), onde ocorriam cinco encontros uma vez por semana. Essas aulas, de um modo geral, permitiram que eu desenvolvesse uma análise autoconsciente da minha personalidade e me ajudaram a entender como a visão de mundo do Ayurveda permeia nossas vidas. Ayur, do sânscrito, significa vida, e Veda, ciência, sendo assim traduzido como “ciência da vida”, uma ciência que visa entender os seres vivos de modo integral.
Desse período em diante, minha vida viria a ser permeada por várias mudanças, pois foram momentos de análise de vários condicionamentos e processos que precisavam ser reavaliados. Levei alguns meses para decidir se faria um curso de formação de terapeuta ayurvédico que iria ocorrer a partir do inicio de 2009. Esse curso seria ministrado por um médico de formação tradicional com especialidade em Ayurveda, Dr. José Ruguê, que construiu uma sólida estrutura material para a prática deste sistema de saúde, criando um núcleo de aprendizado e formando diversas parcerias no Brasil e na Índia. Por sua formação no modelo biomédico tradicional, incorporou certa autoridade ao aplicar os conceitos do Ayurveda, transmitindo confiança aos seus pacientes. Nesse processo, começou a dar cursos de formação de terapeuta ayurvédico no Brasil e no exterior, com um discurso de que “não precisamos ser médicos para aplicar o Ayurveda”.
Neste contexto, resolvi fazer o curso com duração de dois anos. Foi um período de muitas descobertas e desde o primeiro semestre comecei a estudar bastante com o objetivo de me tornar uma terapeuta, mas logo percebi que antes disso precisaria me curar primeiro para depois poder curar os outros. Aqui o termo cura significa adquirir uma postura auto-observadora da mente, corpo e condicionamentos. A integralidade do Ayurveda se refere à conexão com os cinco elementos, pancha maha bhutas, e o universo, com o corpo físico, suas tendências mentais, emocionais e o religare com o espírito. Quando tive o meu primeiro contato com o Ayurveda marquei com o professor das palestras de cinco encontros, mencionada no início, uma consulta ayurvédica, quando foi feita uma análise do meu corpo físico, emocional e mental. Esse professor já havia feito o mesmo curso de formação de terapeuta ayurvédico com o Dr. Ruguê, e por sinal, ele me indicou para fazer esse curso. Caracterizou o meu tipo físico como longilíneo, e observou alguns aspectos externos do meu corpo como o formato, coloração e superfície da minha língua, formato dos dentes, formato dos dedos e unhas das mãos e dos pés, a lubrificação da minha pele, o formato e cor dos meus olhos, textura, coloração, quantidade e lubrificação dos cabelos, tonalidade da pele e tonicidade muscular. Fez algumas perguntas sobre a minha fisiologia, se a digestão era boa, sobre o sono, se era tranquilo e restaurador, sentiu os batimentos do meu pulso e por fim perguntou sobre aspectos emocionais e processos mentais.
Durante a consulta ele observou a minha expressão corporal e facial, meu jeito de falar e tom de voz. Enfim, fui classificada como Vata-Pitta e apresentou que meu corpo demonstra ser mais Pitta e a minha mente Vata, afirmando que é comum a mente ser dominada por um dosha e o corpo por outro. Essa especificidade faz com que o Ayurveda veja cada ser humano como ser único composto de uma combinação própria que representa os elementos da natureza água, terra, fogo, ar e éter, em nosso organismo.
Para entender esse mecanismo deve-se fazer a análise da prakriti, constituição particular de cada indivíduo, como foi explicada acima. A noção de corpo no Ayurveda apresenta três tipos de qualidades físicas da natureza humana ou doshas, que compõem a noção de prakriti, que seriam Vata (éter + ar), circulação e movimento, Pitta (fogo + água), digestão e metabolismo e Kapha (água + terra), estrutura e forma. Os doshas são considerados os princípios governantes de toda a fisiologia e existem em cada ser humano nessa combinação estrutural única. Entretanto quando estão em desequilíbrio se equivalem às toxinas, que estão relacionadas à disseminação das doenças. Esse “desequilíbrio” se baseia no pressuposto de que semelhante aumenta semelhante, onde fogo aumenta fogo, ar aumenta ar, assim por diante.
Na consulta foram detectados alguns desequilíbrios do dosha Vata, tais como hiperatividade, ansiedade, déficit de atenção e suas consequências no corpo físico, fome instável, emagrecimento, períodos cíclicos de fadiga durante o dia. É interessante, pois nunca havia percebido com tamanha clareza os meus processos emocionais, pois sempre estive envolta neles numa espécie de cegueira. Deixo claro aqui que essa fase da minha vida foi conturbada em especial e estava literalmente desconectada. Com essa consulta comecei a me perceber e ao mesmo tempo me estranhar como se estivesse olhando para um espelho. Foram recomendadas algumas medidas para reduzir esses desequilíbrios. Pelo fato de Vata ser um dosha frio, seco e ativo mentalmente foram recomendadas medidas com qualidades opostas, tais como: dormir 8h por dia, deitando antes das 23h; reduzir o ritmo de vida mental; aquecimento do corpo, chá de ervas que reduzem Vata (que seriam as mais suaves como erva-doce, camomila, capim-cidreira), bolsa de água quente no ventre, banhos quentes, evitar correntes de vento na nuca e evitar que os pés fiquem frios, massagem com óleo de gergelim aquecido na cabeça, mãos e pés; caminhada de 30min para aterramento e absorção de Prana, energia vital, entre as 16h e 18h. Através da minha língua ele observou que tenho tendência a acumular tensões na coluna e foi recomendado que fizesse no fim do dia, duas saudações ao sol incrementadas com torções, em ritmo lento com quatro respirações em cada postura. Uma medida de desintoxicação do sistema digestivo também foi indicada, pois foi diagnosticado Ama, sugerindo toxinas sob a minha língua. Então todos os dias em jejum foi sugerido que tomasse meio copo de água morna com quatro gotas de limão e uma mínima pitada de sal. Foi sugerido também que eu seguisse uma dieta alimentar harmônica para o dosha Vata que, segundo Tiwari:
(...) consiste na ingestão de alimentos de sabor doce que aumenta os tecidos do corpo, nutre, conforta o corpo e alivia a fome; os elementos água e terra produzem o sabor doce que incluem carboidratos, açúcares, gorduras e aminoácidos; a maioria dos grãos e frutas é doce. Alimentos de sabor azedo que ajudam na digestão e eliminação de resíduos do corpo e é formado pelos elementos terra e fogo; todos os ácidos orgânicos são considerados azedos; muitas frutas, como o limão, limas, morangos, são considerados azedos com um leve sabor doce; todas as comidas fermentadas, como o missô, molho de soja, yogurt, pickes, são considerados azedos. O alimento de sabor salgado limpa os tecidos do corpo e ativa a digestão; esse sabor é formado pelos elementos água e fogo e existe em todos os sais e algas marinhas; a maioria dos vegetais aquosos como a abobrinha, pepino, tomate, têm naturalmente mais sódio (Tiwari, 1995: 59).
Confesso que inicialmente senti um pouco de resistência ao tentar incluir essas sugestões em minha rotina diária, mesmo sabendo dos meus desequilíbrios e que tudo serviria para me deixar melhor. E fui incluindo tudo bem devagar respeitando o meu tempo para iniciar esse processo e aos poucos já fui me sentindo melhor. A vivência dessa experiência e mais outro curso rápido de um final de semana, que fiz em São Paulo sobre Ayurveda, focado na saúde da mulher, me fizeram sentir mais segura para tomar a decisão de iniciar o curso de dois anos.
Não sei porque me deixei levar por essa filosofia de saúde indiana, talvez pelo fato de ter uma afinidade com a cultura e também por ter passado naquela época por uma fase crítica da minha vida. Penso que uma probabilidade, de acordo com o estudo de Maluf (2007:5), pode se encaixar em minha trajetória, marcada por uma “crise pessoal”, onde depois tive uma primeira experiência com o Ayurveda da forma como apresentei, em seguida uma “iniciação”, marcada com o início do curso de dois anos, o “conhecimento” obtido no curso, a utilização de um repertório utilizando as práticas terapêuticas e espirituais do Ayurveda e a possibilidade de tornar-me terapeuta. Todos esses aspectos são discutidos a partir da noção de “condição terapêutica”, onde a experiência terapêutica e espiritual se transforma num verdadeiro modo de ser, um estilo, um projeto de vida. Talvez se todo esse cenário que apresentei, o Ayurveda fosse trocado por um sistema de saúde chinês, eu tivesse me tornado uma terapeuta da filosofia chinesa a qual aprecio da mesma forma, principalmente por haverem similaridades nas visões sobre a integralidade do corpo, emoções e mente.
Até hoje venho aplicando na minha vida e de forma profissional como terapeuta, as diversas terapias do Ayurveda. Nesse processo surgiu a intenção de aprofundar os estudos do Ayurveda através da Antropologia. Tentarei, portanto, interpretar o meu comportamento por meio do sentido que essa filosofia de cura se deu à minha visão de mundo. Aproveitando o verbo “interpretar” podemos fazer uma referencia a Geertz (1989) que com sua visão semiótica das culturas, através de uma abordagem hermenêutica nos possibilitou uma ampliação do olhar para os sujeitos, culturas ou objetos a serem pesquisados.
Posso considerar primeiramente que senti uma espécie de rito de passagem, lembrando o conceito de liminaridade de Turner (1974:117), no momento que iniciei meus estudos sobre o Ayurveda. Durante o curso de dois anos tive a oportunidade de aprender mais a fundo como é pensada essa filosofia indiana de saúde e como é transmitida para ocidentais no sul do Brasil, em um curso de formação. No curso tivemos aulas teóricas e práticas com ensinamentos sobre plantas medicinais, procedimentos de massagens, orientação alimentar e da rotina diária, aromaterapia, cromoterapia, psicologia védica, visão do Ayurveda sobre a existência humana, terapias de desintoxicação e rejuvenescimento. Posso dizer que a conexão que tenho com o meu corpo atualmente é bem diferente do que tinha antes de ter entrado em contato com o Ayurveda. No início era muita informação como estivesse se abrindo um portal de conhecimento e aos poucos fui absorvendo tudo e noto que ainda há muito que aprender. O fato de o curso ter sido em módulos facilitou esse processo de compreensão e possibilitou períodos de prática dos procedimentos permitindo um espaço para tirarmos possíveis dúvidas durante as aulas. Particularmente as aulas práticas eram as minhas preferidas, pois com elas conseguia ver, em todos os sentidos, como o Ayurveda se manifesta por meio das práticas terapêuticas. Dos inúmeros procedimentos do Ayurveda foram a mim aplicados apenas alguns, dos quais somente dois vou a seguir mencionar nesse ensaio. É importante mencionar que sempre antes de qualquer procedimento é invocada a presença do mestre Dhanvantari, com um canto mantra, considerado o pai do Ayurveda que abençoa e protege quem aplica e quem recebe as terapias.
Sintonizando com os processos
O que mais me chamou atenção nessa filosofia de cura durante o curso e até hoje, é que a “farmácia” está literalmente na cozinha e no jardim ou horta. Todos os manipulados, óleos medicados, tinturas, feituras de massas especiais (como se fossemos fazer um pão) para procedimentos específicos, a feitura da Ghi, uma manteiga com pouca lactose que é usada na alimentação e em procedimentos terapêuticos, são elaborados na cozinha. Passamos boa parte do curso na cozinha preparando as substâncias específicas para os procedimentos a serem efetuados. Ao prestar atenção na minha alimentação, em tudo que alimenta e “entra” pela minha boca, também abri meu olhar para o que “sai” do meu corpo, minhas secreções, excreções, sintonizando com a minha natureza, observando os processos e o funcionamento do meu corpo. Percebi através do Ayurveda que a qualidade das minhas emoções também pode influenciar muito na qualidade das minhas excreções e processos do meu corpo.
A visão de saúde do Ayurveda tem como sua principal característica a prevenção por meio da alimentação, então nas próprias refeições são acrescidos temperos e sabores que proporcionem uma melhora de qualquer desconforto ou desequilíbrio. O objetivo do Ayurveda é manter a saúde sem nenhum remédio. A rotina diária ou dinacharya objetiva preservar a harmonia dos estados físico e psicológico e se dá por meio da criação de hábitos saudáveis segundo o Ayurveda.
O Ayurveda possui diversos tratamentos e também cinco métodos terapêuticos de “desintoxicação” (Panchakarma) para eliminar os doshas agravados segundo Carneiro (2007:188), que seriam: terapia emética, (Vamana) para eliminar o agravamento do dosha Kapha; terapia de purgação (Virechana) que elimina o agravamento do dosha Pitta; terapia por enema (Vasti) que elimina o agravamento do dosha Vata; terapia nasal (Nasya) que elimina os doshas agravados na região da cabeça, geralmente excesso de Vata e ou Kapha; métodos pós-panchakarma (Paschat karma) onde após a eliminação dos doshas agravados consiste em recuperar a vitalidade do organismo. Essas formas de desintoxicação dos materiais de excreção, que são provocadas a serem externalizadas pelos procedimentos do Ayurveda, podem ao mesmo tempo gerar repulsa nos indivíduos, mas também criar uma aproximação para com a sua própria natureza. De acordo com Rodrigues (2006:145), as secreções do corpo humano correspondem a atividades naturais que escapam do controle cultural e ao rejeitar o que em si é natural, o homem marca o que nele existe de cultural separando as relações entre natureza e cultura, onde as relações da sociedade com o corpo são as relações da sociedade com ela mesma.
As secreções do corpo são associadas a um ‘interior’ tenebroso e sua manifestação ‘exterior’ é um deslocamento e sempre uma agressão. O vômito, símbolo cristalizado do nojento, é exatamente a ilustração fisiológica de uma violência no nível da relação natureza e cultura (Rodrigues, 2006: 145).
A prática do Ayurveda faz com que o homem se aproxime da sua natureza, fazendo-o observar e conviver de forma harmônica com os seus objetos de excreção, conhecendo o funcionamento do seu organismo, percebendo os sinais do corpo, criando responsabilidade por sua própria saúde.
Clareando a visão
Um procedimento que recebi e achei bem interessante é o Netra Basti, procedimento realizado com Ghi para nutrir e limpar os olhos, indicado para tratar vista cansada, miopia, secura nos olhos, sendo um excelente rejuvenescedor facial. O Netra Basti envolve modelar uma massa composta de farinha de trigo integral, já adaptada ao contexto brasileiro por ser mais acessível financeiramente e fácil de encontrar, pois na Índia é usada farinha de grão de bico que aqui no Brasil é mais cara e difícil de encontrar em qualquer lugar. Esse molde deve ter o formato de um tipo de óculos envolvendo e protegendo toda região das laterais dos olhos, pressionando bem para fixar bem o molde na pele do rosto. Depois de bem colocado é inserido Ghi morno banhando os olhos numa altura de mais ou menos dois a três centímetros. É uma sensação muito diferente, pois devemos abrir os olhos submersos nesse óleo fazendo movimentos oculares, fechando e abrindo os olhos procurando manter a respiração tranquila. O tempo desse procedimento é de aproximadamente cinco minutos. Depois de retirada a Ghi e o molde tirando o excesso de óleo do rosto deve-se ficar por no mínimo cinco minutos com uma toalha no rosto descansando a vista. Se caso esteja sol é bom ter um óculos escuros para sair pois a vista fica bem sensível a claridade. Não é recomendável ler, usar computador, ver TV depois desse procedimento. É importante ficar relaxado fazendo atividades leves para o corpo e mente. Senti minha visão limpa, lubrificada e um pouco sensível à claridade não só no primeiro dia, mas também alguns dias depois.
Trocando de pele
Um procedimento que recebi que fez um efeito muito bom para a minha pele e me deu uma sensação de leveza é o Garshana. O terapeuta deve usar luvas de seda que protegem suas mãos do efeito esfoliante do sal grosso e das possíveis energias do paciente por conta da limpeza energética que esse procedimento proporciona. Segundo o Ayurveda a seda tem propriedades isolantes. É um procedimento que usa ervas específicas de limpeza, óleo vegetal e sal grosso, além de desintoxicar e esfoliar a pele é também um tratamento indicado para reduzir o esgotamento físico. Senti os efeitos desse procedimento por pelo menos três meses. Imagino que cada corpo tem sua história e sua sensibilidade e talvez os efeitos possam ser menos ou mais duradouros em outras pessoas.
Contato com a fonte
Estive na Índia por três meses em 2011 para finalizar o curso de Ayurveda de dois anos. Nessa vivência senti estranhamento em vários sentidos, desde a comunicação com os indianos, havendo pequenos mal entendidos, talvez pelo fato do inglês ser uma segunda língua tanto para eles quanto para mim. Era preciso paciência, por conta da diferença de costumes, pela complexidade cultural, com suas regras e rituais. Acabei me sentindo muitas vezes uma estranha e da mesma forma eles me viam como uma estranha, mas com o passar do tempo esse sentimento foi diminuindo e me senti mais adaptada. Penso que esse sentimento de adaptação já transmitia para eles certa simpatia reduzindo o estranhamento entre ambas as partes. Quando cheguei à Índia, por mais que a minha proposta era chegar sem condicionamentos e me abrir para um mundo novo, o meu mundo conveniente estava muito naturalizado, com condicionamentos próprios. Quando me distanciei de minha convenção me aproximando de outra, houve esse estranhamento, mas ao mesmo tempo uma ampliação do olhar, me levando a uma aproximação. Paralelamente houve um esforço da minha parte em interagir e aprender, e do estranhamento e do desentendimento surgiu certo entendimento. Aprender Ayurveda no Brasil se torna mais confortável por estar mais familiarizada com meu país de origem, pois o discurso está mais direcionado para o contexto brasileiro. Ir até a fonte é dar de encontro não só com o Ayurveda, mas com a cultura indiana em suas diversas faces, tornando, dependendo da opinião, o estudo mais interessante ou desmotivador. Dessa forma há uma dialética entre o que Venuti (1995:5) chama de “domesticação”, quando quem transmite o conhecimento é levado pela linguagem de quem recebe e “estrangeirização”, Venuti (1995:24) quando quem recebe o conhecimento é transportado pela linguagem de quem transmite. Assim acredito que a domesticação se enquadra quando o ensino do Ayurveda é transmitido fora da Índia e a estrangeirização quando o Ayurveda é transmitido em seu país de origem. Para quem já vivenciou essas duas formas de aprendizado percebe-se a diferença. De acordo com Bhabha (2001:241), a dimensão transnacional da transformação cultural torna o processo da tradução uma forma complexa de significação. Dessa forma cada cultura irá significar o Ayurveda de acordo com a sua visão de mundo. A partir dessa significação são construídas as identidades culturais contemporâneas, dentro do conceito de hibridismo, segundo Bhabha (2001:241), vê-se o transnacional como tradutório. A desconstrução da proposta pós-colonial oferece uma abertura que gira em torno dos conceitos complexos de identidade social.
Cultura indiana
Pela experiência que tive ao passar três meses na Índia percebi num contexto geral costumes bem distintos da cultura brasileira. Desde a preferência alimentar, hábitos diários, a religião, rituais, relações sociais, entre outros aspectos. A grande maioria dos indianos come com as mãos, sendo que sempre a mão direita deve levar o alimento à boca, por ser considerada “limpa”, e a mão esquerda é usada para higiene pessoal. Não se deve cumprimentar com a mão esquerda. Ao ir ao banheiro não se deve contar com o uso do papel higiênico, os indianos costumam utilizar baldes com água para se lavar. Muitas vezes dependendo da região também não se encontra vaso sanitário nos banheiros, mas sim um buraco no chão ou simplesmente não há banheiro principalmente nas regiões rurais, fato que mostra a facilidade dos indianos exercitarem a postura de cócoras. Outro aspecto relevante é que muitos indianos preferem comer sentados no chão. O hábito de ficar de cócoras, com as pernas cruzadas, ou sentadas sobre os calcanhares os torna mais bem dispostos ao se alimentar sentados no chão. Os temperos utilizados na alimentação indiana são muito variados, e talvez pelo fato de quase não comerem carne essa quantidade de especiarias torne a comida mais saborosa. Segundo Harris (1999), a falta de viabilidade ecológica para consumo e a superpopulação restringem o consumo de carne vermelha, portanto “não é boa para comer e não é boa para pensar”. A maioria dos indianos se alimenta além de grãos, vegetais e frutas, de derivados lácteos, ovos, aves, cordeiro, peixes, porco, cabra e também carne vermelha (casos mais raros), podemos caracterizar a culinária indiana como ovolactovegetariana. A quantidade de carne ingerida na Índia é em média 1g por pessoa por dia. Além desses aspectos ecológicos e sociais, segundo o Ayurveda a carne vermelha possui uma energia rajas, e quem ingere carne pode ter tendências à raiva, inquietude, desejo intenso e agressividade. Essas tendências não são bem aceitas na religiosidade indiana. Como as práticas religiosas na Índia são bastante valorizadas, a carne realmente continua não sendo boa para se pensar e nem para se comer nesse país. O sabor picante é bem predominante e nas refeições e além desse sabor devem também estar presentes o sabor doce, salgado, ácido, amargo e adstringente.
Na visão do Ayurveda, o equilíbrio dos seis sabores nas refeições reflete no equilíbrio físico e energético do corpo humano. Ao compararmos num contexto geral com os costumes brasileiros percebemos muitas diferenças. Nota-se muito estranhamento quando ocidentais viajam para a Índia pela primeira vez e acabam surgindo inúmeras tentativas de adaptação e em alguns casos pode ser traumático caso o estranhamento seja muito grande.
Observando algumas visões sobre identidade, saúde e corpo vemos segundo Mauss (2003:422), que observa a diversidade das expressões corporais do homem, condicionado às suas necessidades e a cultura/sociedade à qual pertence e afirma que o homem deve ser considerado em todas as suas dimensões: social, psicológica e biológica. Em seus estudos dos textos sânscrito do Yoga, reconhece que de todos os estados místicos há ainda muitas técnicas do corpo que não foram estudadas e aprofundadas na cultura ocidental. Ao mesmo tempo, uma questão ocidental que Le Breton (2003), antropólogo contemporâneo, problematiza, é a modificação do corpo nas diferentes sociedades, gerando uma eterna tensão entre cultura e natureza. A questão eterna do encontro da saúde perfeita, da juventude com fórmulas mágicas instantâneas, da tecnologia, onde se busca no externo, sempre algo para preencher um corpo como se ele fosse um objeto, uma máquina, um conjunto de órgãos.
Outro exemplo a se pensar é que o estar saudável ou não e a distinção entre o normal e o patológico é relativa em diversas sociedades, Durkeim nos oferece questionamentos para pensar na distinção entre e saúde e doença e afirma que antes de tudo a doença pode ser algo possível de evitar, que não está implícita na constituição regular do ser vivo e coloca:
“O indivíduo que sofre de gastrite pode viver tanto quanto um homem são se seguir um bom regime; fica sem dúvida obrigado a tais cuidados. Mas não estamos todos obrigados a também cuidar de nós mesmos, e a vida poderia ser mantida de outra maneira¿ Cada um tem seu regime de vida peculiar; a do doente não se assemelha a que prática a média dos homens de seu tempo e de seu meio; mas essa é a única diferença que existe entre ambos, nesse ponto de vista. A doença não nos deixa sempre desamparados, num estado de desadaptação irremediável; ela apenas nos constrange a uma outra adaptação., diferente da exigida da maioria de nossos semelhantes.” (Durkeim, 1971:45)
Esse último também nos coloca que a doença pode vir a ter um papel útil de aumentar as defesas do organismo. E se formos colocar mais um ponto de vista para esse diálogo poderíamos refletir a doença e a liminaridade, um rito de passagem. Essas ideias permeiam diversos estudos relativos ao individuo nas sociedades, e nos permitem relativizar pares antagônicos como saúde/doença, normal/patológico, bonito/feio, natural/artificial, eu/outro etc.
Breve histórico do Ayurveda
No processo histórico da antiga Índia até os dias atuais, vemos que o Ayurveda ainda está presente na cultura indiana e teve seus momentos de declínio e ascensão, sendo retomado definitivamente após a colonização inglesa na Índia, quando se deu o advento da revolução cultural, a qual devolveu à oficialidade a sabedoria, a filosofia e as ciências tradicionais na primeira metade do século XX, permanecendo até os dias de hoje. Atualmente existem mais de 150 universidades na Índia que ensinam Ayurveda. O Ayurveda tem sido transmitido para diversos países, conquistando cada vez mais adeptos.
Há certa dificuldade racional em apresentar o surgimento do Ayurveda, pois de acordo com a história da antiga Índia, a tradição do Ayurveda surgiu de Brahm, o criador. Essa tradição ao ser traduzida por “sábios” para o plano terreno através dos Vedas, escrituras sagradas do hinduísmo, verificam-se duas ramificações que tratam sobre saúde, Rig Veda e o Atharva Veda. Dentre os sábios mencionados sobre a origem do Ayurveda temos Atreya, Charaka e posteriormente Agnivesa, o qual revisou e refinou os escritos dos primeiros criando a “bíblia” do Ayurveda lida até hoje, o Charaka Samhita. Conta-se que a origem do Ayurveda é datada de aproximadamente 5.000 anos.[2]
O Ayurveda chegou oficialmente ao Brasil em 1985, segundo Carneiro (2007:15), foi marcado pelo convênio do Instituto Nacional de Assistência e Previdência Social (INAMPS) e do Ministério da Saúde com o Instituto de Ciência e Tecnologia Maharishi, liderado pelo mestre indiano, Maharishi Mahesh Yogi. A partir dessa data até hoje o conhecimento do Ayurveda só expandiu. Diversos médicos e especialistas em Ayurveda e mestres indianos vem disseminando essa “ciência da vida”. Ao mesmo tempo muitos interessados tem ido diretamente à fonte para absorver os ensinamentos dessa ciência. No Brasil estas terapias se difundem a partir, principalmente destas trocas e trânsitos transnacionais entre indivíduos que se identificam com o Ayurveda como sistema de saúde, que acabam se formando nas tradições medicinais presentes em seu país e, muitas vezes, organizados em torno de núcleos de profissionais que ministram cursos de formação, palestras ou workshops. Nestes espaços também transitam curiosos, pessoas que participam dos cursos, mas sem interesse em aplicar os conhecimentos profissionalmente.
No caso dos costumes alimentares que são adaptados mundo afora, Bhabha (2005:307) coloca um exemplo sobre as relações exteriores onde os alimentos não possuem fronteiras, pois vão sendo introduzidos em diferentes países e sendo adaptados conforme os ingredientes que predominam localmente. Podemos dizer o mesmo dos trajetos de aspirantes à terapeuta que buscam conhecimentos e os “traduzem”, os adaptam, de certa maneira, para outros contextos culturais dos quais fazem parte, introduzem-nos nas redes de terapias, resultando em novas identidades híbridas e transitórias. O sistema de ensino expandiu conforme o avanço da tecnologia e atualmente é possível estudar on-line e na segunda parte do curso aplicar a parte prática presencial. É possível encontrar oferta para esse tipo de curso em diversos países os quais o Ayurveda se ramificou. Vemos que o acesso ao estudo do Ayurveda se torna bastante amplo em todos os sentidos por sua grande expansão, e ao mesmo tempo pode ser inacessível financeiramente para muitos indivíduos por conta do custo, sendo frequentado apenas por uma camada social elitizada ou classe média.
Ao verificarmos segundo Nogueira (2009:265), o fato do modelo biomédico ocidental ter sua origem em meados do século XIX, com o advento da anatomia patológica, podemos reconhecer que o Ayurveda tem realmente muita história para contar por sua complexidade e “tempo de vida”. Essa complexidade implícita na cosmovisão do Ayurveda reflete a complexidade do seu próprio país de origem. Assim, como um sistema de saúde tão complexo pode se adaptar em diversas culturas pelo mundo? Vemos primeiramente que a partir da tradução do sânscrito, idioma original do Ayurveda, para o inglês o conhecimento desse sistema de saúde foi traduzido para outros idiomas e dessa forma questiono, será possível manter realmente uma fidelidade aos textos originais? Há sempre uma transformação, uma representação, uma interpretação, uma adaptação às quais possivelmente devem possuir suas diferenças particulares. Até na própria Índia, por ser um país muito grande como o Brasil e com climas diferenciados, percebi como as práticas e ensino do Ayurveda se diferenciam sutilmente de região para região, por exemplo, o Ayurveda do Norte da Índia é diferente em alguns aspectos do Ayurveda do Sul da Índia.
Vemos atualmente uma “crise” do modelo biomédico ocidental e essa situação foi detectada desde a segunda metade do século XX e, de acordo com Luz (2005:151), está presente nos planos ético, político, pedagógico, econômico e social. Por meio dessa “crise” as medicinas orientais por sua simplicidade e visão de mundo estão adquirindo uma maior visibilidade e certa simpatia do público em geral e já podem ser consideradas como sistemas de saúde profissional, segundo Langdon (1994:14). Uma possível solução para a relação de comunicação entre os diversos interlocutores que se envolvem com o tema saúde e doença é, segundo Groisman:
(...) considerar que esta pode ser um processo contínuo, recíproco, dialético, no qual os interlocutores – ambos se tratem com base num estatuto de humanidade integral, diversa, mas plena, na qual os protagonistas se consideram mutuamente sujeitos ativos, pensantes, criativos. (Groisman, 2007:15)
Considerações
Ao refletir sobre minha experiência como usuária e terapeuta Ayurveda, posso sintetizar toda a vivência como um processo de transformação pessoal onde sentir e escutar o meu corpo é mais fácil atualmente e as percepções da mente e das emoções ficaram mais nítidas e foram percebidas principalmente através dos hábitos alimentares e o emprego de uma rotina diária particular que por sua vez denotou a clara presença da minha constituição particular e os possíveis desequilíbrios que a tornam suscetível fazendo-se menos nebulosa a percepção e a noção de integralidade da minha psicobiologia. Sei que ainda há muito que aprender, pois é um universo rico e complexo, e isso é muito perceptível principalmente quando se está no país de origem para aprender com os “nativos”. É necessário ter um bom entendimento do idioma inglês para compreender as aulas e a vida que eles levam, estando aberta, sem julgamentos e condicionamentos. Foi uma experiência muito rica e transformadora que através dos métodos da Antropologia pude enxergar tudo com novos olhos, desconstruindo minha experiência ao tentar interpretá-la.
Referências
Bhabha, Homi (2005). O local da Cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG.
Breton, David L. (2003). Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, Campinas, SP, Papirus.
Carneiro, Danilo Maciel (2007). Ayurveda – Saúde e Longevidade, Goiânia. Editora UFG.
Durkeim, Émile (1971). As regras do método sociológico, São Paulo, Companhia Editora Nacional.
Geertz, Clifford (1989). A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Guanabara.
Groisman, Alberto (2007). “Interlocuções e interlocutores no campo da saúde: considerações sobre noções, prescrições e estatutos”, Antropologia em Primeira Mão (APM), 93: 5-19.
Harris, Marvin (1999). Bueno para comer: Enigmas de alimentación y cultura, Madrid, Alianza Editorial.
Langdon, Esther Jean (1994). “A Negociação do Oculto: Xamanismo, Família e Medicina entre os Siona no contexto pluriétnico”, Trabalho apresentado para o concurso de professor titular na UFSC, (Mimeo).
Luz, Madel T (2005). “Cultura Contemporânea e Medicinas Alternativas: Novos Paradigmas em Saúde no Fim do Século XX”, PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, 15 (Suplemento): 145- 176.
Maluf, Sônia Weidner (2007). “Peregrinos da Nova Era: Itinerários Espirituais e Terapêuticos no Brasil dos Anos 90”, Antropologia em primeira mão (APM), 100: 5-26.
Mauss, Marcel (2003). Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac Naify.
Nogueira, Maria Inês (2009). “As Mudanças na Educação Médica Brasileira em Perspectiva: Reflexões sobre a Emergência de um Novo Estilo de Pensamento”, Revista Brasileira de Educação Médica, 33 (2): 262-270.
Rodrigues, José Carlos (2006). Tabu do Corpo. Antropologia e Saúde. Rio de Janeiro, Editora FioCruz.
Tiwari, Bri Maya (1995). Ayurveda, a Life of balance. The complete guide to Ayurvedic Nutrition and body types with recipes, Delhi, Motilal Banarsidass Publishers Private Limited.
Turner, Victor (1974). O processo ritual, Petrópolis, Editora Vozes.
Venuti, Lawrence (1995). The translator’s invisibility: a history of translation, London/ New York, Routledge.
[1] Mestranda em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Orientanda do Prof. Dr. Alberto Groisman. Contato: mpb.alba@hotmail.com
[2] Conforme as minhas anotações das aulas do Curso de Formação de Terapeuta Ayurvédico, ministrado por Dr Ruguê em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. (fev. 2009 - jan. 2011).
*Texto tomado del Archivo Documental “Cuerpos, sociedades e instituciones a partir de la última década del Siglo XX en Colombia”. Mallarino, C. (2011 – 2016). Tesis doctoral. DIE / UPN-Univalle.
La autora: Mestranda em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Orientanda do Prof. Dr. Alberto Groisman. Contato: mpb.alba@hotmail.com